sábado, 18 de fevereiro de 2012
Olhava para o resultado de sua vingança com a mesma indiferença com que limpava a bunda todos os dias. Aquela cena bizarra, ou seria um cenário?, as pessoas olhando descrentes, com a boca aberta à força, talvez pela surpresa, pelo medo ou pelo horror irônico daquele quadro. Um homem agachado na escadaria com as costas inclinadas, apoiadas nos degraus superiores, estava a dois degraus do pátio que terminava na igreja. Parecia alguém que se ajoelhara gritando furioso contra os céus. Exceto por sua cabeça. Era o contraste, o toque final. A cabeça não fora simplesmente torcida por completo, ela foi arrancada com precisão cirúrgica e a costura feita com ela ao contrário era apenas uma tênue linha, invisível àquela distância e em meio aquilo tudo. Ninguém ousava se aproximar. Bem, agora a área estava isolada e repleta de policiais estranhos, não esses comuns que vemos todos os dias. Mas ninguém ousou se aproximar antes. Com exceção daquela infeliz viúva. Sempre de luto e cabisbaixa, com a sua mania de chegar cedo para a missa matinal. Tenho certeza que a cara dela foi impagável. Ele fumava um cigarro. Impassível. Não fumava muito. Fumava quando pensava muito. Pensava no que faria em seguida. Ele não sentira nada ao olhar aquele corpo que pertencera ao homem que odiara tanto. Não se sentia satisfeito. Tinha que se vingar mais. O sino indicando meio-dia já batia. Tinha que voltar pra casa, tirar o terno, beijar a esposa e almoçar em paz. Tragou, expirou, jogou no chão e pisou em cima, gostava de fazer isso; se sentia estiloso. Um ritual engraçado.
A gente fica ali largado... A gente só tá morrendo.
E a gente fica ali sentado, sem nenhum interesse especial.
Tendo a animação ceifada aos poucos por um sádico.
Já estamos todos velhos, daqui só temos o que morrer.
E morremos mesmo. Aos poucos e um por um.
Éramos dois agora. Dividindo bebidas e charutos.
Esperando ali naquela sala. Esparramados em poltronas.
Aquelas grandes, bonitas e vermelhas.
A fogueira crepitava. Talvez querendo atenção.
Mas a gente nem conversava. Só enchíamos os copos.
Cada um na sua cabeça vazia, soltando fumaça e olhando o nada.
Trocando de posição vez ou outra. Tentando adivinhar quem seria o próximo.
E a gente fica ali sentado, sem nenhum interesse especial.
Tendo a animação ceifada aos poucos por um sádico.
Já estamos todos velhos, daqui só temos o que morrer.
E morremos mesmo. Aos poucos e um por um.
Éramos dois agora. Dividindo bebidas e charutos.
Esperando ali naquela sala. Esparramados em poltronas.
Aquelas grandes, bonitas e vermelhas.
A fogueira crepitava. Talvez querendo atenção.
Mas a gente nem conversava. Só enchíamos os copos.
Cada um na sua cabeça vazia, soltando fumaça e olhando o nada.
Trocando de posição vez ou outra. Tentando adivinhar quem seria o próximo.
sábado, 11 de fevereiro de 2012
Sempre fui obcecado por livros com obsessão. Digo, com personagens obcecados com algo. Loucos. Sedentos. As obsessões variavam. Os livros variavam. Mas tinha esse em especial que me conquistou nos meus anos jovens e impressionáveis. Lembro de ter comentado várias vezes dele com poucas pessoas. Ganhei de presente. Faz tempo. Da minha última namorada. E ele ficou intocado desde que terminamos. Não conseguia passar da dedicatória. Decidi ler. Com uma avidez que dignificasse a avidez da primeira leitura. Não me lembrava direito da história, menos ainda de seu final. Peguei uma chave que usaria para marcar a página em que parasse. É a chave de onde guardo as coisas que ganhei dessa namorada. A última. Guardo tudo lá; menos uma caneca. Talvez eu a coloque lá também. Na verdade, o que me motivou a ler foi isso. Era algo que ganhei dela. Pertencia àquela gaveta. Deveria ler o mais rápido possível e devolvê-lo a seu lugar.
Assim que o manto doce do sono cobriu a maioria dos mortais da região, o silêncio começava a se espalhar. Início de madrugada. Até eu estava um tanto calmo. Isso era raro. Resolvi aproveitar o momento para iniciar a leitura. Mal sabia que devoraria o livro com voracidade invejável, que o faria sem perceber, que a chave serviria apenas para algumas pausas ocasionais. Talvez eu revirasse um pouco as coisas da gaveta depois. Sei lá o motivo. Já estava escrevendo com um tanto de vinho na cabeça. Acho que é um vinho barato; mas eu gosto do nome. Beber escrevendo me lembrava mais ainda do livro. Não, eu não me vejo no cara que bebia enquanto escrevia. No livro. Nem sinto inveja dele. Não mais do que se tem de um condenado no corredor da morte. Sentia um pouco de afinidade com eles, na verdade. Do modo como tocavam a vida. Eu poderia ser qualquer um dos dez; mas não era nenhum. Poderia me deixar envenenar, como fizeram; ainda posso; mas não é a minha vez de escolher. Marquei a página com a chave. Desci e deixei o livro no sofá. Comi um pão pequeno e acabei com um resto de suco. Era só pra enganar. Só pra conseguir ler. E continuaria lendo ali na sala mesmo. Tirei a chave antes de abrir o livro. Idiotice minha, tive tempo de pensar. Mas gravei bem como era a página. Abri e folheei até achar. De como sabiam de quem era a vez de morrer, de como não faziam nada, não queriam. Um a um vão sendo eliminados, se achando castigados. Mas não passavam de moscas, descobririam quando sobrassem não mais que três. Um por mês. Mais eu ainda os estava conhecendo, ainda tinha muito por vir, ainda era tudo uma suspeita, uma infeliz coincidência, só coisa da cabeça e ainda tinha uma pausa com um outro pão pequeno e dois copos de coca com um arroto forçado.
Estava pensando como tenho uma vida ruim da melhor maneira possível. Eu tenho uma mente fodida. Fodidamente brilhante, poderia ser. Mas não tenho paciência pra isso, não tenho saco. Nem vejo motivo pra querer que fosse assim. Também acho que ela já está estragada demais pra ser tão brilhante assim. Não fico ouvindo vozes na minha cabeça. Nem sempre, ao menos. Sou louco. E eu sei que não adianta pedir pra que não me entenda mal, porque já entendeu errado. Não adianta, não tem mesmo como você saber. A verdade é que sou preguiçoso e ainda não terminei de cavar a cova. A minha. Depois da segunda pausa é tudo sobre morrer com o que gosta; com o prazer da degustação final; com o prazer de saber. O final é um pouco de sentido, um pouco de redenção e um pouco de provocação a imaginação. Mas não preciso que minha imaginação seja provocada, não mesmo. Precisava de um pouco de álcool. Só um pouco mesmo. Doente como estava, um pouco já bastava. Confiro as horas no celular '05:04'. 'Meu caralho que vou esperar um minuto pra ver as horas com os minutos iguais', penso. Coisas que grudam na cabeça, sabe? Levanto e vou pra cozinha, encher um copo, beber, subir, beber, escrever. O álcool nem faz nada. Já estou mesmo sem noção. Ele é só desculpa.
Eu precisava de um cigarro, porra. É sempre o que preciso. A sensação que um deixou em mim há muito me persegue. Preciso de outro. Já estava ficando barbudo de novo. Precisava de uma mulher que mandasse. Colocar um pouco de ordem, satisfazê-la, enlouquecê-la, esses tipos de coisa. É bom pra passar o tempo e me manter ocupado. Longe da minha mente. Conheço alguns poucos no mesmo estado que eu. Nessa decadência que disfarçamos. Nesse invisível e patético declínio. Nunca mencionamos; nunca conversamos sobre nada disso. Não tenho certeza se há um acordo jamais proferido ou escrito que determina isso; ou se apenas, assim como eu, não tem mesmo o que falar. Porque por mais que pense, que procure em tudo, que reflita, continua aparecendo sempre uma única saída. Ridícula. Descarto. Pra não dar nem a chance de pensar sobre. Pff... Como se fizesse real diferença.
Preciso de mais vícios.
Assim que o manto doce do sono cobriu a maioria dos mortais da região, o silêncio começava a se espalhar. Início de madrugada. Até eu estava um tanto calmo. Isso era raro. Resolvi aproveitar o momento para iniciar a leitura. Mal sabia que devoraria o livro com voracidade invejável, que o faria sem perceber, que a chave serviria apenas para algumas pausas ocasionais. Talvez eu revirasse um pouco as coisas da gaveta depois. Sei lá o motivo. Já estava escrevendo com um tanto de vinho na cabeça. Acho que é um vinho barato; mas eu gosto do nome. Beber escrevendo me lembrava mais ainda do livro. Não, eu não me vejo no cara que bebia enquanto escrevia. No livro. Nem sinto inveja dele. Não mais do que se tem de um condenado no corredor da morte. Sentia um pouco de afinidade com eles, na verdade. Do modo como tocavam a vida. Eu poderia ser qualquer um dos dez; mas não era nenhum. Poderia me deixar envenenar, como fizeram; ainda posso; mas não é a minha vez de escolher. Marquei a página com a chave. Desci e deixei o livro no sofá. Comi um pão pequeno e acabei com um resto de suco. Era só pra enganar. Só pra conseguir ler. E continuaria lendo ali na sala mesmo. Tirei a chave antes de abrir o livro. Idiotice minha, tive tempo de pensar. Mas gravei bem como era a página. Abri e folheei até achar. De como sabiam de quem era a vez de morrer, de como não faziam nada, não queriam. Um a um vão sendo eliminados, se achando castigados. Mas não passavam de moscas, descobririam quando sobrassem não mais que três. Um por mês. Mais eu ainda os estava conhecendo, ainda tinha muito por vir, ainda era tudo uma suspeita, uma infeliz coincidência, só coisa da cabeça e ainda tinha uma pausa com um outro pão pequeno e dois copos de coca com um arroto forçado.
Estava pensando como tenho uma vida ruim da melhor maneira possível. Eu tenho uma mente fodida. Fodidamente brilhante, poderia ser. Mas não tenho paciência pra isso, não tenho saco. Nem vejo motivo pra querer que fosse assim. Também acho que ela já está estragada demais pra ser tão brilhante assim. Não fico ouvindo vozes na minha cabeça. Nem sempre, ao menos. Sou louco. E eu sei que não adianta pedir pra que não me entenda mal, porque já entendeu errado. Não adianta, não tem mesmo como você saber. A verdade é que sou preguiçoso e ainda não terminei de cavar a cova. A minha. Depois da segunda pausa é tudo sobre morrer com o que gosta; com o prazer da degustação final; com o prazer de saber. O final é um pouco de sentido, um pouco de redenção e um pouco de provocação a imaginação. Mas não preciso que minha imaginação seja provocada, não mesmo. Precisava de um pouco de álcool. Só um pouco mesmo. Doente como estava, um pouco já bastava. Confiro as horas no celular '05:04'. 'Meu caralho que vou esperar um minuto pra ver as horas com os minutos iguais', penso. Coisas que grudam na cabeça, sabe? Levanto e vou pra cozinha, encher um copo, beber, subir, beber, escrever. O álcool nem faz nada. Já estou mesmo sem noção. Ele é só desculpa.
Eu precisava de um cigarro, porra. É sempre o que preciso. A sensação que um deixou em mim há muito me persegue. Preciso de outro. Já estava ficando barbudo de novo. Precisava de uma mulher que mandasse. Colocar um pouco de ordem, satisfazê-la, enlouquecê-la, esses tipos de coisa. É bom pra passar o tempo e me manter ocupado. Longe da minha mente. Conheço alguns poucos no mesmo estado que eu. Nessa decadência que disfarçamos. Nesse invisível e patético declínio. Nunca mencionamos; nunca conversamos sobre nada disso. Não tenho certeza se há um acordo jamais proferido ou escrito que determina isso; ou se apenas, assim como eu, não tem mesmo o que falar. Porque por mais que pense, que procure em tudo, que reflita, continua aparecendo sempre uma única saída. Ridícula. Descarto. Pra não dar nem a chance de pensar sobre. Pff... Como se fizesse real diferença.
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