domingo, 9 de março de 2014

Encontro-te na rua, quase bêbado, ando até você, não digo seu nome, não sou familiar a ele; te abraço, por mim ou por ti, ou pela solidão, ou pela compaixão de quem sabe também o que é ter o peito cortado em incontáveis pedaços, talvez literalmente demais. Encontrei-te por acaso novamente mas nada é por acaso tão somente. Esqueci meu cigarro em casa mas faço o gesto de tirá-lo dos lábios. Ah, as brasas que já me queimaram. Estamos os dois longe demais da sobriedade e perto demais um do outro. Você se aproxima pra me beijar, julgo; contenho tua boca com meu dedo, não vim aqui pra isso. Seus olhos soltam fagulhas de revolta e indignação pelo rejeitar. Hoje é um dia difícil e eu só quero um pedaço de chão para não acordar em casa. Pediria desculpas por isso se houvessem palavras em minha boca e dali ia embora; ou pedia um pedaço de sala no desespero, só pra desaparecer um pouco; ou convidaria para uma boa bebida e com ela, uma boa história. [...] E, no fim, isso tudo poderia só ter sido, um ocorrido fora do comum, mas o consumado é que passei do teu lado com os olhos no horizonte e você sem saber olhar senão pra frente.
Acendo um cigarro e a fumaça ascende quase em espiral. Minha cabeça girava. Ela era mesmo mineira, se entregava aos poucos, me devorava aos poucos, me matava pelas beiradas. Mas o que eu estava dizendo era tolice, o que fazia de mim tolo.
Ela me disse "espero que você me ame mais que a si mesmo" e com um beijo cálido me deixou embaixo de uma marquise enquanto apertava o casaco, vestia uma capa e se aventurava naquela chuva que provavelmente estava causando enchentes noutros pontos da cidade. Ela havia dito que voltava em um mês, acho que isso já tem uma semana, talvez tenha sido ontem, talvez tenha três horas e quarenta e sete minutos e cinquenta e cinco, cinquenta e seis, cinquenta e sete... pronto, quarenta e oito minutos; nunca fui bom em marcar tempo ou em conviver com ele. Pra mim, o tempo é (considerado) uma espécie de deus, não sádico mas implacável. A chuva ainda não parou, ou já começou de novo, fica aquela alternância de fortes pancadas e insistência gotejante do verão, ou inverno, não tenho certeza; os meio-dias estão infernalmente quentes, com o sol tirando lascas de tudo que toca - o que, em geral, significa peles - enquanto as meia-noites estão invernalmente geladas, com a lua iluminando o rosto pálido de quem se encolhe tentando se proteger do vento - destas terras, o que mais gela é o vento, invade qualquer roupa, pulmão ou mente; invrão ou vererno, deve ser a estação. bem, estamos naquele climempo clima tempo em que este tempo temperamental faz sentido.

Acordo com o sol no rosto. Um pouco de suor dentro do cobertor, tenho quase certeza que estava frio quando me deitei, bem frio. Já passa de meio-dia e já passam de dois os dias sem almoço. Levanto, uma tragada funda, o ar é expulso como veneno, tosse violenta - mas é só ar, corpo! Ar! O clássico arrastar-se até o banheiro. Os padronizados olhos fundos. Não, não é maltrato, é descuido. Mas, ah, vá! Não faz mal um pouquinho de tudo que é ruim. Deixa mais essa vontade de vomitar, deixa bem à vontade o desejo de se embriagar, deixa assim largado por qualquer quarto, deixe-se acordar sem saber onde, sem lembrar como, e com a pequena esperança de não se reconhecer no espelho.