sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Se eu tivesse ouvido, se eu tivesse imaginado por conta própria, talvez me contado, eu provavelmente estaria indiferente - falando uma piada que não vejo graça, dando uma opinião que não é minha. Fosse menos tarde, fosse menos cansaço, fosse menos loucura. Comia o cão as entranhas de outro. E fiquei surpreso do arrepio que senti. A crueldade do mundo me bateu; ironicamente, não um tapa cruel - mas um soco simples e sincero. A sinceridade do mundo me assustou. Não era um lugar isolado mas certamente havia abandono. Seria tanta fome - me pergunto. Quero uma lógica pra me consolar. Era como matar alguém sem querer. Mas pior, muito pior. Era deixar os cereais molengas de tanto tempo submersos no leite.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Finalmente. Depois de quatro aniversários teus neste lugar. Venho dar-te parabéns por quem tu eras e foste até o fim. A música que tocou em teu sepultamento ressoa em minha cabeça. A banda é ótima, fui descobrir mais velho; ou era, por ter dado seu último álbum, show, fôlego. Antes fosse tu de loucura também.

Queria sentar contigo hoje, contar-te da virgindade que se foi, dos vícios que chegaram, das pessoas que morreram por (falta de) minhas mãos, de tudo que precisei matar, das loucuras, das cervejas boas, das cachaças ruins, do gosto adquirido ou descoberto por conhaque - amargo igual a vida.

Queria dividir o palco contigo e um cigarro backstage, marcar uma jam session pra logo em seguida. Apresentar um som que arrepia, tirar uma dúvida de gramática com teu pai que insistia em ensinar tudo com citações de poetas ótimos - cantados ou falados - e eu via tanta graça pra mais tarde encontrar tais passagens em leituras e audições, e maravilhado reconhecer.

Se escrevo bem, devo a forma a teu pai e a essência a ti. Fui lapidado posteriormente, é claro, mas a base estava lá pra permitir um crescimento forte. Se nem abala-se na leitura - calma que não demora um texto pra te gelar. Mas isso já é conteúdo pra outro teatro...

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Pinga, pinga, pinga. Um gotejar constante, num ritmo agradável. O soro balança o tempo todo, parece querer refletir algo mas só trespassa o verde apagado do teto. As paredes brancas são confortáveis. Quero uma camisa de força e um quarto acolchoado. Os canos coloridos em verde, amarelo e cinza são toda vida que essa sala precisa. Combinam com meu moletom, amarelo na blusa e verde na calça; se por acaso meu rosto estiver cinza, faremos um par perfeito. A agulha parece dar pontadas mesmo parada e o gelado que desce até a veia chega a fazer cócegas. As últimas gotas não parecem últimas, seguem o mesmo ritmo. O conteúdo vai terminando, descendo lentamente. Parece morte de tanta certeza e vagarosidade. E para bem antes, obviamente. A moça vem, pergunta como estou e me indica a saída.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Sabe como é, a turma é do futebol, a galera é da festa, o pessoal é do trabalho. E tem os sobreviventes, que são do bar. Mas bar mesmo, não essas frescuras reluzentes e piscantes que mais parecem árvores de natal e atraem mais crianças tresloucadas que pornografia na televisão. Bem, aquele é meu povo. Como andarilho, viajo a esmo mas se fosse escolher um lugar pra ficar, ou talvez eu apenas ainda seja jovem demais pra morar com eles naquela depressão toda, certamente escolheria um bar desses. E depois uma casa perto ou um banco numa praça, caso dormir no bar fosse inviável. A coisa é que ainda procuro no mundo e em mim, apesar dos inúmeros momentos em que minha única busca era sobre o que tinha no fundo do copo. E das garrafas. Nunca algo. Nunca é muito tempo. Nunca é todo o tempo. Nem assombrado sou mais!
Os cães se calaram, os demônios sumiram, as alucinações cessaram. Explicado, alimentei-me de meus cães, devorei seus corações selvagens; cacei meus demônios sem parar, os matei sem comê-los, todos os seis; a loucura tão antiga se acomodou perfeitamente em minha cabeça e já não mais saía - sem permissão. Tornei-me meu próprio demônio. Tornei-me meu único demônio. E bem aí, me veio nostalgia. A lembrança de um menino encolhido com seus oito aninhos pesando sua cabeça, seu corpo tremendo de frio, e a sensação quente surgindo no peito que queimava, doía e confortava.

terça-feira, 12 de maio de 2015

Espero sentado em um banco, cabisbaixo com uma mão na outra também cabisbaixas. Ouço as botas pesadas contra o chão. Eles chegaram. Levanto do banco. Seis soldados com coletes e máscaras. Colocam um grande saco preto no chão. O comandante mostra seu rosto nipônico e diz que o pedido está pronto. Dois enfermeiros se aproximam para verificar o conteúdo. Olho ao redor, o hospital era o único prédio iluminado na madrugada. Suspiro. Acenam pra mim afirmativamente, o corpo está correto e os órgãos internos também. Eu só precisava de um osso grande qualquer que não sei, mas eles só produziam completos. Você podia basicamente pegar qualquer parte pra si; exceto o cérebro, que eles vinham sem. Falência cerebral era a única maneira de morrer. Isso ou ser pobre. O governo dizia que tal coisa não existia mas todos sabiam que se precisava de sua permissão ou de dinheiro para poder se reproduzir - bem, o fato era que quem tinha filhos não regulamentados sumia alguns dias depois.  Algo que realmente me incomodava era o rosto do meu recipiente que parecia genérico e inexpressivo, como se todos os recipientes tivessem esse rosto - mas eu não tinha como saber disso porque era o primeiro que eu via. Eu tinha um osso quebrado internamente que acabaria perfurando um órgão vital, algo assim. Convenceram-me que eu precisava daquela cirurgia.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Ouro Preto perdeu seu encanto quando eu me encantei por minha menina. Além do sujo das pessoas, essas festas não combinam com aqui; meu conhaque combina, minha sinuca combina, meu cigarro combina, solidão combina.

Que outra cidade tem o frio do sul e o calor do nordeste num cenário tão próprio? Mas nada igual, são só sabores abrandados pela distância. Foi o vento quem trouxe. O vento que por vezes uiva; sem notícias, sem objetivos. A cidade que geme ou os moradores que suspiram? Há um manto triste sobre a cidade e todos ignoram. Amar a lua é fácil mas não sei se te gosto, cidade. Não sei se te desejo fim ou salvação, cidade. Há uma dualidade trazida, não nascida. Nativos ariscos e estrangeiros aproveitadores. Há ressalvas de ambos os lados; onde não há? Mas bosta ou meia bosta não me apetece por igual. Eu queria a cidade só pra mim. Ou me enganei de te pensar mágica? Ou me iludi com toda essa beleza viva?
Era eu inocente demais? Era eu virgem demais?

Ah, Ouro Preto, quem é o escravo agora? Diz-me se essas ruas asfaltadas não são cicatrizes cinzas em teu corpo. Diz-me se esses prédios feios não são queloides que jamais sumirão. Diz-me se sofres ou se sofro sozinho por ti. Dize-me aqui baixinho só pra mim se essa chuva lava teu sangue e choro. Mente nossa semelhança. Explana minha loucura. Acalente-me com tua nudez e uma canção de ninar dos mortos.

sábado, 14 de março de 2015

Em meu papel, surge seu rosto. Em palavras. Não sei desenhar. Imagino que no desenho seja só copiar seu rosto, perfeito que é, intraduzível. Este aqui se juntará a outras dezenas de caligrafias treinadas em seu rosto. Acho que cada vez escrevo melhor. Acho que cada vez me satisfaço menos.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Noite. O ônibus corre pelas ruas já desertas. Vejo no vidro meus óculos, meu cabelo que nem mais lembra da careca de meses, minha barba espessa que esconde a pele por talvez anos, meu nariz protuberante de herança alemã - com a exceção da lente e da armação, tudo salta e se ressalta, beirando o estado do agradável; tudo se envolve na sombra única desse espelho improvisado que tem em si todo o peso da cidade, do centro ao meu subúrbio leva o mendigo abraçado confortado por papelão, leva a senhora - outrora esnobe - curva numa humildade imposta pelo tempo, leva o mercador coxo que sôfrego por um trocado antes de guardar suas quinquilharias esbraveja promoções incoerentes por pouco não indo ao chão, leva a moça que quer comprar carne barata e vender cara a sua, quase leva o ciclista que passa rente ganhando buzinas, leva o motorista de rosto rubro e inchado por tanta gritaria e tão pouca paciência, leva o bairro de prédios altos e curvas sinuosas de perigos dissimulados, leva as plantações adormecidas pelo luar, leva o cavalo e seu pasto naquela liberdade gradeada, todos eles embaçados e distantes do outro lado do meu reflexo que parece mais real que aquilo; pela quantidade que me olho, pareço Narciso - pelo que se passa em minha cabeça, às avessas; mas observo mesmo impassível sem me inclinar para o beijo ou para o cuspe, apenas pensando no escuro profundo que aparece em lugar de meus olhos, pensando se conseguiria escrever algo que encaixasse o que eu sinto e uma frase que inventei há algumas semanas, 'porque monstros se mensuram mas a escuridão é infinita.' Fosse fácil assim, encaixaria aqui mesmo. Fosse sonho, dissiparia ao amanhecer. Fosse a garrafa no copo e o copo em mim, minha imagem de pele se dissolveria mais fácil. Mas sendo o que era, terminava como sempre, com o caminho da poltrona pra cama.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Raspe meu cabelo, amor.
Raspe minha barba.
Rasgue-me deste mundo,
seja melhor que minha cachaça.

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

É o clássico da fúria. Quis ser vento, brisa quando mais velho, levar folhas e buscar notícias. Brando e sereno, de dar raiva e inspirar paciência. Mas não. Não balancei chuvas, não entrelacei árvores. Os sorrisos trazidos não compensam os levados. De ajudar a todos, não salvei nem a mim. Arrastar-se feito em milongas. Mais fui empurrado que carreguei. Hoje não. Quis ser o deus. Quis ser diabo. Quis o mundo inteiro explodindo. Ilusões que convencem. Rodei, rodopiei, tornado que passa rasteira em si, tufão que se joga contra as paredes, baques que não têm nada de surdo, gritados, estourados, sangrados. Virei furacão. Durei a noite e dois dias. Vali meio tostão furado e um coração. Pra mais ou pra menos. Nasci pra ser valete, fui curinga.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Um canto de parede, um pedaço de céu, fungos, cores, cascas, rascunhos, qualquer coisa me atrai mais do que pessoas e sua capacidade ilimitada de falar coisas inúteis, sério, sério.
Acabo esquecendo onde estou, em algum lugar que sabiam meu nome, descubro logo. Meus olhos demoram a focar, meus ouvidos recebem a piada que se perde antes da minha mente - digo piada por escutar risadas ao redor, mas longe, longe.
Daria até pra dizer que a ideia de sair de casa e encontrar alguém que conheço assusta, mas assustador mesmo é esperar sentir algo diferente de uma vontade de vomitar ou escárnio ou aquela doce, gelada e distante apatia desinteressada.
Não estou drogado. Não estou bêbado. Não estou privado de sono. Não estou com o peito em desalento. Não estou com a corda no pescoço. O diabo não bate à porta.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Quero expelir de minha mente tudo com essa fumaça acinzentada, cuspir com o que deixa meu pulmão preto tudo que deixa minha alma negra.
De almas alvas viemos e nos colorimos com o que vivemos, minha mente varia de tonalidades, azul e laranja minhas favoritas, mas minha alma é vermelha, vermelho vivo, vermelho sangue. Sangro fácil, as coisas me doem fácil mas também amo fácil, sinto fácil e por mais que eu tenha tantos fáceis em mim, parece-me que sou difícil compreender. Meu coração é simples, sonhando que imagina caminhos retos nessas ruas tortuosas de becos sem saídas. Mas minha mente é louca, digna dos mais escuros hospícios e mais pesados livros. Sinto uma afeição e proximidade inexplicáveis com doentes mentais por isso. Acho que estou somente um passo atrás deles, apenas uma questão de controle e (ou, talvez) inteligência - e eu sei tão bem quanto esses dois recursos me andam sendo sabotados.

O que não me desce numa tragada empurro com uma bebida, arde mais o peito que a garganta. Um gole pro santo e outro pra tragédia. Dos que sobraram da turma, sou sempre o primeiro a ficar bêbado e o último a largar a garrafa. Mas até isso já faz um tempo e não cabe aqui.
Vomito, vomito-me ao chão, reviro todo meu ser em várias golfadas. Negro como piche, reflexivo como espelho. Vejo-me, me vejo, repito porque olho bem, rio porque conheço bem, é fácil demais se desesperar e achar graça, tanta coisa, tanto ódio e tanta loucura, até me espanto - de verdade - com tudo que se dispõe à minha frente. Mundo, mundo, vasto mundo, o que já fui? Nem medo, nem vergonha. Apenas horror e a sensação de estar em casa. Mundo, mundo, vasto mundo, dá-me uma rima que combina pra amansar minha construída desgraça. Se não fosse cada passo, em ultimato, tomado por mim; não fosse o frenesi a me arrastar cambaleante; fosse eu mais da luz. Mas o que esperar senão isso de um vômito-eu? Ah, do topo o caminho é todo diferente; aprecio, sim, a escalada, mas não sinto mais. Ainda não sei o que agradeço e o que despedaço; mas nada feito, nada será, nada se fará. O tempo continua o senhor absoluto nesse modo ridículo de vida. Resta apenas reconhecer e engolir pedaço por pedaço, colocando em seu lugar todo esse meu trajeto indigesto.