quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015
Noite. O ônibus corre pelas ruas já desertas. Vejo no vidro meus óculos, meu cabelo que nem mais lembra da careca de meses, minha barba espessa que esconde a pele por talvez anos, meu nariz protuberante de herança alemã - com a exceção da lente e da armação, tudo salta e se ressalta, beirando o estado do agradável; tudo se envolve na sombra única desse espelho improvisado que tem em si todo o peso da cidade, do centro ao meu subúrbio leva o mendigo abraçado confortado por papelão, leva a senhora - outrora esnobe - curva numa humildade imposta pelo tempo, leva o mercador coxo que sôfrego por um trocado antes de guardar suas quinquilharias esbraveja promoções incoerentes por pouco não indo ao chão, leva a moça que quer comprar carne barata e vender cara a sua, quase leva o ciclista que passa rente ganhando buzinas, leva o motorista de rosto rubro e inchado por tanta gritaria e tão pouca paciência, leva o bairro de prédios altos e curvas sinuosas de perigos dissimulados, leva as plantações adormecidas pelo luar, leva o cavalo e seu pasto naquela liberdade gradeada, todos eles embaçados e distantes do outro lado do meu reflexo que parece mais real que aquilo; pela quantidade que me olho, pareço Narciso - pelo que se passa em minha cabeça, às avessas; mas observo mesmo impassível sem me inclinar para o beijo ou para o cuspe, apenas pensando no escuro profundo que aparece em lugar de meus olhos, pensando se conseguiria escrever algo que encaixasse o que eu sinto e uma frase que inventei há algumas semanas, 'porque monstros se mensuram mas a escuridão é infinita.' Fosse fácil assim, encaixaria aqui mesmo. Fosse sonho, dissiparia ao amanhecer. Fosse a garrafa no copo e o copo em mim, minha imagem de pele se dissolveria mais fácil. Mas sendo o que era, terminava como sempre, com o caminho da poltrona pra cama.