São anos, terra, ventos, tudo que se pode passar. Mas volta a sensação, talvez reforçada por todo esse tempo latente, talvez revigorada por todo esse ódio acumulado. Pura e simplesmente sinto vontade de queimar o mundo, e descarrego tudo isso em mim. Meus dedos abrem feridas nas pontas de se retorcerem contra a mesa, a parede, o chão. Meus punhos sangram com socos vãos. Minha pele se rasga com arranhados desesperados. Quero cortar, abrir, me virar ao avesso. Ver o que mora em mim e é tão ruim, tão amargo.
Sou feito de ódio e fome. Meu primeiro choro nesse mundo foi de fome. Sinto fome desde que nasci, fome de tudo, só fome. Consumir o mundo, me devorar até sumir. O senhor que todo dia colocava uma bala no cilindro e puxava o gatilho contra a cabeça é o homem que faz mais sentido, o que são os outros então? O que é essa faca que giro sobre a mesa? Estou tão cansado, quero dançar. Começar com um primeiro corte de ódio, a primeira gota de sangue, o frenesi que se segue. A dança louca, simples e íntima da lâmina e do ser. O que faz parar é trazer toda a dor para fora, ou cair no chão e adormecer. Cicatrizes são feitas pra se acumular.
Escrevo em meu corpo segredos da minha sanidade. Não saberei ler depois. Não precisarei ler depois. Minha mente dará outras voltas, outros contornos, não digo que irei parar no mesmo lugar, não saberia dizer. Sou outrem, no mesmo corpo, nos mesmos pecados, novo amargo. Sou o mesmo, nunca mudo, transformo tudo, enterro a mim. Embriagado pela luz tremeluzente do fogo sob o vento, tudo toma calma frente ao delicado furor da chama, fecho os olhos e deixo o cansaço me levar.