terça-feira, 30 de abril de 2019

Começaria pedindo-te desculpas, mas eu não me desculpo. Não me culparias da demora, entende a necessidade de andar. Você sabe bem, conheço o meu caminho que faço caminhando. Sabe também que o tempo já me cobrou cada erro. Morreste ano retrasado mas ano passado você não morre. Talvez desejasse eu isso a mim mas não quero levar flores para minha cova.

Belchior, recomeço pedindo desculpas pela demora, o tempo é um cão raivoso que morde meus calcanhares e você sabe bem como é as coisas do coração. Ah... Não escrevi em tua morte como senti que devia, não escrevi em meu aniversário como pensei que faria. Os vinte e cinco anos de América do Sul são tão amargos quanto todos os outros. Feitos principalmente de sangue e de sonho. Os invernos de tristeza amontoados. Os anos de fúria que se somam. Talvez você possa compreender a minha solidão, o meu som e a minha fúria.

Na minha cabeça era um texto para ti mas o fiz sobre mim... Afinal a tua voz pesa cada frase em meu peito enquanto estes olhos se cegam de fechar. Não sei falar de ti sem inflamar-me. É mais proximidade que egoísmo, espero. Eu me desesperava no tempo que parei de sonhar. No presente é diferente, do silêncio que me corrói. Isso não me serve mais.
É cada vez mais alucinante suportar o dia. A pressa de viver se esconde enterrada nas areias do meu deserto. Sufoco o que minha alma deseja. Vejo-me preso num reino onírico incapaz de delirar. Clamo tuas canções, entendo teus pedidos de socorro, não entendo os meus.

Ah, Belch, meus amigos me esperam no bar mas estou preso na minha cabeça. Por vezes quero ir sozinho, naquela conversa simples com quem traz a cerveja.
Foi tudo um pesadelo ruim? Que pesadelo grande.
Talvez eu espere o vento forte que os leve embora.
Depois de você não apareceu mais ninguém. O tempo andou mexendo com a gente, sim.

Belchior, você morreria de novo e eu não teria terminado esse texto.
Não li os livros sobre você, não li as teses, nem as dissertações, nem as entrevistas, nem as notícias, nem as luzes póstumas.
Ah! Deixemos o arrependimento para os niilistas. Talvez eu tenha esperado acabar esse ano tão sujo. Qualquer vitória desse ano existe sobre uma luz perversa, talvez sobreviver a ele seja a pior derrota. Os cigarros apagados de fúria e não tristeza. Sempre é dia de ironia no meu coração.

Nos últimos vestígios do dia, nos últimos resquícios da sanidade. A vida sempre acontece assim. Acho que queria ser as coisas mais simples. Acho que não. Queria talvez um texto mais limpo a dedicar a ti mas trouxe um texto vivo, maior que eu, menor que você. Sei que está bem leve, dado o peito pesado.
Tua morte, como de meus amigos, tem um peso único. Não aumenta. Não me acerta como um murro. Não me atropela. Tem seu peso e só. Soma-se a todos os outros pesos que carrego. Nunca aumentam. Mas enfraqueço. Levado aos joelhos. É nessa dor que vejo meu mapa do tempo.
Nada acontece que alegre meu coração.
Escrevo assim, como quem tem uma chance só, como quem tem poucas horas. Dado o tempo de escrever mas não de apagar. Meu passado é a própria ilusão de escrever-te tranquilo, que queimem as palavras de mim, fugaz como a chama, quente como a chama, elusiva como a chama. Escrever é melhor que sonhar. 

Morreu assim, como deveria ser, de um coração selvagem.
Estenderam teu corpo em poste de luz mas já o desceram de lá.
Pediria palavras cândidas a ti mas no tempo passado até elas já se fazem gélidas.
E é isso, num texto mais teu que meu, sem sombra de dúvidas.
Lembro-me bem de quando cheguei e do blusão de couro que se estragara.
Em paralelas esquecendo tudo que um dia quis te dizer.
Não amanheceu ainda. Saiamos de nossos caminhos. Agora estamos em paz, o que temíamos chegou.