Todas e todas essas voltas para terminarmos sentados aqui. Na mesa, eu, um prato, e minha mente. Minha mente me morde pelas bordas. A insanidade mastiga pequenos pedaços e os devolve sem engolir. Pego-me em pé fitando o arroz que queima na panela. Não me importo tanto, se estiver comestível, comerei. O leve gosto de queimado acaba sendo uma diversão. Um desviar de atenção dessas folhas com seu verde vibrante sob o sol balançando ao ritmo do vento. O problema da vida é tudo ser tão bonito e tão cruel. Um ciclo é cruel em si.
estou com uma sensação estranha porque me tornei um estranho a mim
neguei-me tanto e por tanto tempo...
tenho as pilhas de afazeres acumuladas nos armários,
se não era quebrado pelo mundo, quebrei-me em minhas próprias mãos para conseguir existir
se confiei em mim que descobriria depois tudo novamente,
despedacei-me em papéis, anotações, rabiscos,
sinto em me decepcionar, não é isso que está acontecendo
o eco de glórias passadas que se encerra
os uivos de fúria sumindo sob a chuva
o silêncio que cresceu em meu ventre é absurdo
engoliu meu próprio abismo, absorveu minha escuridão
sou o próximo
Primeiro a loucura, depois a fúria e então o silêncio.
Não sei se caminho para algum silêncio ou se deveria...
Mas sinto surgindo em minha volta
emanando de meu ser, escorrendo pelas paredes, ascendendo pelas frestas do chão
Não temo o silêncio como a mata não teme a foice, como a caça não teme a lança.
Meus olhos em silêncio concentram-se na tarefa em minha frente. Os lábios grudados quase selados de tanto tempo sem se mover. Os movimentos das narinas já se desfizeram na naturalidade. As mãos trabalham. A cadência do martelo é tudo que existe no ar. Seu som é pequeno frente ao silêncio e, quase em vergonha, rapidamente se esvai.
Se a loucura dança e a fúria queima, o silêncio nada faz. E se abriga nessas porções de nada que percorrem as ruas como uma brisa que se transporta na sombra do vento.
Ainda não entendo. Como não entendia a primeira loucura ou a primeira fúria - e únicas, é claro.
Meu eu, uma mente, no prato, servidos a ninguém.
Não entendo como o sol não espanta o silêncio como espantava a loucura da alvorada.
Não entendo como a água gelada não dissipa o silêncio como dissipava a fúria em chamas.
Não entendo como o silêncio mora nas pequenas mordidas que dou em minha comida, nos passos calculados que dou sem pensar, na mão que levo à porta, nas pálpebras que pesam sobre meus olhos.