segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

O cair leve dos sonhos ao chão. Nada pesam. São como folhas mortas.
Ocas como pessoas mortas

Acordar no corpo usado de ontem, vestir a roupa usada, sorrir o sorriso usado
Usar o mesmo disfarce, usar a mesma fuga, fazer dos passos torpes o vício
Deito em retalhos sobre o colchão
Não me sinto mais encaixar nas coisas, não vejo mais as peças encaixadas na minha cabeça
Os pés escorrem para o chinelo, em passos normais ao banheiro, a calça, a bota, a camisa, a jaqueta, tudo se ajusta perfeitamente
Tudo tem uma névoa de errado, de incompleto
A sola contra as pedras, os movimentos cadenciados num mundo em que o silêncio grita, de cores desbotadas, as coisas que toco não parecem reais, as coisas que sinto parecem inventadas
Nasce uma indiferença que não tem como não nascer. Não fossem as chamadas obrigações, a vã esperança, o lento desapego, e talvez uma insana inquietude, ficaria deitado até quem sabe desaparecer ou sentir-se acordar de um sonho ruim em que não sentia nada.
Se tudo, agradeceria à Fúria.
É o pouco que sinto, é o pequeno calor nesse grande salão vazio, é o passo após o passo mesmo sem objetivo, é que me faz arrastar meu corpo pra longe do silêncio até que ele não seja tão letal e inevitável, é o ardor selvagem da chama a não querer se extinguir.

A Fúria, que faz funcionar esse grande remendo de tantos e tantos estilhaços, que amarra e aperta com força todos esses pedaços para não soltar, que percorre meu corpo em espiral e conecta tudo que me esforcei pra arrebentar, que percorre minha mente em espiral e faz o sentido que for possível dos fragmentos encontrados, é o que escapa de minhas pupilas percorre ao redor de meus olhos descende por meu rosto toca meu pescoço pressiona meu peito inflama meus braços inflama minhas pernas envolve meu corpo, não me faz correr pois pesa e pesa, mas percorre inexorável seu caminho, atropelando o que for necessário, da mesma forma como atropelei a mim.

Escorrem os desejos carregados sob o peso da água gelada
Descende sobre minha Fúria o leve véu de minha loucura
Esvaem-se anseios, os toques, os significados das cicatrizes, caem em meu vazio e até o pequeno desespero que se encontra gigante é levado em gotas
Não dá tempo nem de concluir o sentimento angustiante que espreita um choro. Já passou...
As chamas da carne se apagam como vela sob a chuva
Talvez chiem mas se o fizeram foi tudo abafado pelo cair das águas

Não é rio, não vai seguir pelo ralo a correr onde lhe levar as águas
É pedra que águas passam e querer o calor ou o frescor não afeta em nada sua passagem
É só o meio, não começou em si, não acabará em si
Não cabe a si a decisão, mesmo que não caiba mais em si

Passa a água, perdem-se os desejos que não vão para outro lugar, desfazem-se os caminhos em sua pele, desatam-se os sentidos em mente que só servem a não entender o mundo
A gaiola de tudo é muito pequena
São as correntes que lhe lavam, as torrentes que lhe prendem

Subisse em vapor o que se deseja, respiraria e arderia novamente
Nu espera as últimas gotas escorrerem do corpo
E não há nada demais, só resta minha nudez
o que está gravado no corpo e o que foi arrastado da mente

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Mordo essas palavras de maldade. Não as direi a esses olhos que me refletem num frio brilho marmóreo, pétreo e duro. Não pronunciarei o que de mim sobe sangrando e a ti seria lançado como pedra, a arrancar-te a força reações desmedidas por provocações vazias. Escorregue eu no cascalho desses sentimentos quebrados e me engasgue nos fragmentos do que se choca contra meus dentes. Afogar não afogarei, meu abismo é maior que meu mar.

Foi apenas um despertar selvagem de uma noite intranquila.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Uma da manhã, quase duas, esquento o almoço, não é nada demais.

Por que de novo isso? Jogando-me em pequenos extremos delirantes, descendo por pequenos precipícios. O que busco nesse estado insensato? Os sabores exploram minha língua, não é nada demais e ainda assim é tão satisfatório.

Sinto todo o cansaço e todas as sensações. Meu corpo acordado deseja correr e deseja dormir. A passos do colapso, preciso andar, continuo a comer sentado.

As coisas já tiveram a ausência de bordas, escorrendo umas nas outras em tudo que olhava, meus pensamentos e sensações derretidos, perdendo lentamente a forma, se tornando algo primitivo.

As coisas já tiveram o excesso de bordas, não misturando por mais que comprimidas umas nas outras, correntes invisíveis feitas de parede, não se mexendo, não quebrando.

As coisas estão tremendo, minhas mãos são firmes, meus olhos dançam no espelho, frenéticas rebelando-se contra o borrão suavemente incolor que se tornam.

Reviro fragmentos de memória sem real ânimo, como se fossem ao acaso remendar em um quebra-cabeça completo, como se em alguma parte restasse um magnetismo que unisse algum pedaço noutro.

Vejo minha mão em cores firmes que minha cabeça insiste em ser vibrantes, meu pé toca o chão e abraça os pequenos grãos de pedra e areia, tenho certeza que acharia um chinelo em casa se tivesse procurado, não sei por que estou aqui fora a andar descalço ladeira acima. Talvez meu corpo em algum nível ache que isso me despertará. A temperatura do ar toca minhas narinas, o sabor do vento meus ouvidos, estou entrando num estado de sobrevivência animal, preciso entrar no sono.

Uma descida rápida na loucura é explosiva em seu começo e fim, uma espiral louca descendente é uma vida lenta, a passos vagarosos nunca parando e jamais acelerando. Um arrastar sem pressa das areias sob teus pés, do tempo a sangrar sobre tua cabeça.

sábado, 5 de setembro de 2020

Minha paixão por conhecer cidades também se aplica a mim.
Me perder nas minhas ruas e vielas até fazer uma lógica de seus caminhos ou entender como percorrer em qualquer direção ou apenas sentir pra onde devo ir.
Jogar-me solto sem hora pra voltar ou lugar pra chegar, vou parar onde meus pés me levarem.

Respirar os passos, como faz meu corpo que precisa desse frio como preciso de minha Fúria
Ardendo suave em minha pele sem doer demais, sem machucar de verdade
Preciso andar.
que é a maquinação do meu cérebro
que é a digestão dos meus pensamentos
é parar a sangria dos meus sentimentos

No céu vasto do mundo aberto sob um sol tranquilo ou até nesse vento noturno suave que me faz fechar os olhos e lembrar do ar sufocante e angustiante da cidade que parecia sempre querer fechar-se sobre mim
Andar no mundo é sempre chegar em algum lugar
em minha mente parecem complexas repetições de um ciclo formando uma espiral como a me enganar que não me percorro nos mesmos enganos a afundar nos próprios passos cravados na lama que se fez no meu chão sob meus pés
O pavimento responde à pergunta de meus calçados num baque firme a me jogar na direção que preciso percorrer
Essa luz amarelada que se espalha no calçamento
já não me bate
meio pedra tornado também
mas amarela minha visão que se perde em lembranças de iluminação estourada pela claridade do sol
saio da rua torto e torno a andar em mim
dei a volta mais longa por trás dos meus pensamentos

Andando em caminhos esquecidos, caminhos secretos, caminhos proibidos
Não há mais nada aqui.
Tudo que foi dividido foi acabado por finalizar todas as partes
As personalidades, as fugas, os colapsos, preso agora em um mesmo instante, um mesmo eu a todo instante.
Não habita mais o velho de palavras enigmáticas e rosto taciturno
Ou a criança de rosto faceiro, nas perguntas sem limite, na curiosidade infinita e na vontade de devorar todo o conhecimento pra entender o mundo
Ou o jovem que beira a arrogância pelo orgulho mas é bom além do suficiente nas coisas que faz
Quem é isso aqui que não mais sou eu?
Aqui não é casa de ninguém.

Era eu tantos, era eu tão vivo, sorvendo da inocência cristalina de cada pedaço, a mesma casca de recheios diferentes.
Fica ao corpo o impacto e a mim os destroços.

Nem espelhos quebrados, nem estilhaços de vidro, memória ou tempo
Os fragmentos já são uma coisa própria, já são agora partes do chão
que brilham trincados como detalhes foscos de um piso quase sem textura
As paredes que eram retorcidas de terror e medo são distorções de troncos de árvore movendo-se ao vento capturados em um momento estático
Os caminhos perdidos e circulares em labirinto se conectam e se sobrepoẽm e se entrelaçam e chegam a todos os lugares
Os sentimentos também abandonaram esse lugar
Um castelo de parte inacabada e parte em ruínas
Não faz sol, não faz lua, a iluminação existe como meio de tarde que tudo tem uma cor mas nada brilha, como meio da noite que tudo tem formas e bordas e quase nenhum recheio
Quando vejo isso percebo que recuperei a ver as bordas, ao menos agora, e que as coisas não se derretem, dissolvem, misturam loucamente
Mas não vejo os recheios das coisas
É sempre uma troca estranha?

Não há pra onde correr e talvez não tenha como correr.

Não conseguiria descrever o vazio em menos palavras, e ainda faltam linhas e linhas a sangrar presas na pele que estanca a mim.
Não há mais nada aqui.
Não há ausência, não há falta, há vazio.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

culpem-me sentimentos vorazes queimados em mim e largados em um canto
culpem-me as palavras que arderam peito, garganta e boca para morrerem travadas entre os dentes
não fui sincero a vocês, não as escrevi no tempo de ardor
reviro agora as cinzas em mãos dormentes
reviro-me depois inquieto noite adentro

culpem-se mornas sensações, alguma coisa quebrada antes de inteira
quase sentires, meio viveres, lento despedaçar
a luz que toca torta pela janela, refletindo pequenas linhas no teto onde meus olhos dançam espirais e não se colocam a imaginar nada
bate o pensamento no limite da retina
como uma pedra a quicar na superfície do lago
como não romper a se aprofundar em uma ideia
como ter a imagem defronte e não olhar
sabemos que forçar é atravessar
que bater os olhos é ir de encontro à porta e não ao encontro da sorte
que essa película que torna as coisas perfeitamente inacabadas
existe apenas na mente
e que parece tão palpável que a respiração é suspensa
como se pudesse de alguma forma arrebentar

domingo, 12 de julho de 2020

Não é verão, mas talvez seja um delírio meu ao sol.
Pensei em como seria ter menos cicatrizes pra caber mais de você
ser menos dolorido para ter mais sorrisos
ser menos bobo para te dizer mais

não é verão, mas talvez esse sol forte contra essas paredes brancas brilhando nas coisas tenha confundido os meus sentidos e me posto em devaneios
talvez esse céu azul sem fim em direções me retire do pensar num infinito sentir, gravando na fragilidade de minhas retinas a imensidão das pequenas coisas sem filtrar nada

tenho uma boca só, que morde os alimentos, mordisca teus dedos, te diz palavras doces e beija teu corpo
meus olhos eternas câmeras em mim a capturar teus pequenos gestos, teus pequenos detalhes
as pequenas pintas em teu rosto e como se destacam diferentes quando teu rosto me olha, quando sorri ou quando dorme
as marcações em linhas de teus lábios e o entorno amendoado de teus olhos com um brilho mágico de uma tela que reflete em ti a luz que lança na parede

será que me perdi no meio desses mansos raios de sol do amanhecer ou na serenidade desse rosto que respira tão perto em mim?
às vezes me pego segurando o ar pra que não perturbe de forma alguma a cadência de teu peito
estático, tensiono os músculos a não me mover, a não atrapalhar teu leve sono
e, no inevitável deslocar do meu corpo, aninha-se mais em mim, derreto a me encaracolar em ti
será que me perdi entre o toque macio de teus cabelos e teu perfeito aroma de pele, perfume e cachos?

em pleno inverno, me vejo nesse calor emaranhado os braços aos teus, entrelaçadas as pernas nas tuas
se algo sobra fora das cobertas, que se aconchegue também, refazendo todas as torções do corpo para caber mais e mais perto
adicionaria horas ao relógio se significasse prolongar a noite a poder tocar suave os dedos em ti
acrescento delicadas carícias aos traços de teu rosto que mesmo relaxado em sonhos se abre em sorriso
em pleno frio, vejo-te só moldura, esperando a aurora de pequenas cores a te revelar

terça-feira, 7 de julho de 2020

A Lua sobe pelo céu como passam as coisas pela vida
cada vez mais distante, cada vez com um brilho mais pálido,
cada vez apenas uma pequena lembrança de si mesmo,
cada vez uma imagem mais frágil do que já foi em um momento.

Termino uma garrafa de vinho que abri em alguma ocasião.
E as coisas são como esse vinho também.
Depois de abertas, já começam a se moldar em outras coisas.
Adaptam-se ao ambiente quando sobrevivem,
mudam-se ao que se espera ou se mantém e batem de frente.
Depois de violadas e experimentadas seu maior gosto, só tem à frente o fim.
Não, jamais o mesmo sabor, mais doce ou mais amargo, mais seco ou mais aveludado,
todos os toques são novos, mesmo os dedos antigos,
mesmo os olhos cansados, mesmo os peitos inquietos.

E é tênue a separação da loucura e sanidade,
e isso não é nada novo, não falo aqui nenhuma descoberta,
e é débil a resistência da loucura à sanidade
antes perdido que preso às definições do que são

Como o escorrer do último gole ao fundo do copo
como as pequenas partes de si desperdiçadas em cada recipiente
como as cores desbotadas junto com seus significados
como a luz toca torta os tortos objetos da memória

mordo de leve os dedos como mordisca o tempo a mim
não preciso que me lembrem
não preciso que batam em mim os relógios
descarto os sinos, os alarmes, as areias
disperso sob o tempo que se empilha
essa sala sofre falta de você

quarta-feira, 24 de junho de 2020

queria jorrar linhas e linhas dessa embriaguez
textos completos direto de garrafas, talvez até um livro dado suficiente álcool
sorver de cada gole uma vontade inumana a abastecer o embalo de meus dedos
mas não me iludo, sei que não escorre minha escrita de mim assim
tão claro a mim como só escorre meu sangue de meus punhos cerrados contra a parede
de meus dentes cravados sobre minha pele
dos caminhos que danço por meu corpo
não há mais espaço decente para escrever em meu peito
preso noutra ilusão de juntar os cacos do tempo quebrado
de ver escorrer pelos dedos as areias de tudo

a sobriedade me alcança em algum momento, a insensatez não me assombra
não tenho nos dedos a lucidez para escrever o que vejo
ainda não entendo como pode tudo ser feito de coisas que se dissolvem
ainda dói ver mesmo sob a luz cálida da manhã o fenecer sobre o florescer
choro por mim mesmo, pequeno luto solitário
choro por essas coisas, pequena luta irrelevante

não tenho em mim um consolo para as coisas tristes,
talvez esteja tempo demais em meio às coisas que transpiram tristeza
e às coisas medrosas que se plastificam em medo a morte
e às coisas inertes que são a própria morte
e às coisas mortas vazias de significado
talvez esteja tempo demais transpirando tristeza em meio às coisas

a aurora é a devastação de meus devaneios
é o rasgar dos meus delírios que se esvaem como nunca existissem
é a constatação que não importa a intensidade das loucuras
que não importa a sombra de teus pensamentos
não importa o nome da tua espiral
é o pequeno aviso que já se foi, há muito, o momento de dormir

domingo, 21 de junho de 2020

Das coisas mais belas que poderia te dizer, digo-te - perderia novamente minha solidão por tua presença.

terça-feira, 21 de abril de 2020

Num dia frio e violento.
Com emoções que deixaram de ser fortes, agora violentas, explosivas.
O dia de violência contra meu corpo pela violência contra minha mente.
Um protesto às avessas.
Em que sou tudo.
A parede, o soco, a faca, o sangue.
A violência das emoções na parede do meu ser é a violência das minhas mãos contra a pele de minha carne.
O tremor, as mãos trêmulas, o coração trêmulo, o corpo violentado.
Têm-se nomes mais floridos por aí, mas já passamos do ponto de velar as emoções.

sábado, 11 de abril de 2020

Os olhos pesando sob o vento forte que uiva nas frestas, o repousar da cabeça no colchão sem roupas, num pensamento temporário que se estica para um dormir entremeado de pequenos despertares
Rodopia os desejos suavemente trazendo o equilíbrio entre consciência e devaneio, sem provocar o decepcionante acordar
A chuva desce forte, como esperada surpresa, com seu cheiro molhado, com sua firmeza líquida, com seu peso pesado
Escorrem os sonhos como escorrem as águas
O sol me pegou as pernas, num cochilo de janela aberta
Esquentou-me durante um sono leve, alternado com a brisa leve

quarta-feira, 11 de março de 2020

As linhas ruivas, as linhas púrpuras, as linhas vermelhas, as linhas rosadas, as linhas de pele desbotada. Tenho todas. Se misturam todas. Linhas pratas só existem em livros.
Cicatrizes sobre cicatrizes. Parei de entender as coisas há muito. Restam as sensações e a lenta desconexão. Como uma flor e as pétalas arrancadas lentas. Como os grãos de areia fogem nas frestas de sua ampulheta.
Uma concha mais cheia do lado de fora
Tudo ecoa aqui
O sol para por sobre a pele, nos cacos restantes a luz se distorce e contorce e se prende
Os sentidos se prendem atrás de um vidro espesso e embaçado
Ouço algumas coisas, mas distante
Passos firmes em direções vacilantes
Não dá pra não usar os mesmos pés que si mesmo
Onde caminhar estará
E todos seus pedaços fragmentados
E todos seus remendos costurados
Lutados entre si na briga vã
Colapso de todas suas paredes
Aceitar o desmanche, aceitar a queda
Qual o nome dado a tua espiral?
Qual o carinho com teus tormentos?
Enterrastes todos os cacos para se quebrar mais
Os dias se aglutinam de uma forma estranha
Como os números dos dias significarão algo se os das horas não significam?

Se esvai em pequenas tosses as grandes vontades

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

O frio das entranhas. Queria dizer o frio dentro do frio mas não é isso. Não são como sombras que se aprofundam na escuridão. Emana como um pequeno sol distorcido. O frio da alma. De todos os invernos contados em tristezas, não tive tanto frio. O frio me atinge no meio do verão onde as névoas e chuvas em meio às montanhas fazem esforço para disfarçar a estação que deveria chamar pelo sol forte, cores alaranjadas e cachoeiras. Um frio que parece nascer infinito de um poço e nas alças que se houvessem puxaria e puxaria sem fim. Um frio que todas essas roupas não seguram, que a água do chuveiro a queimar a pele não faz diferença. Tampouco faz a água fria sobre o corpo. É um frio além desse corpo. Além das minhas sensações mundanas e humanas. É um frio que cresceu a ser maior que eu. Um frio que não cessa como as horas cessam, que não passa como as horas passam. Que existe alheio ao tempo numa dimensão própria. E o receio ou realização maior se encontra em que talvez seja apenas um convite sem recusa a pensar-me, que talvez seja apenas a superfície dura e gélida de um espelho.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Fragmentos de memória em pequenos pedaços de papéis.
Virei assim
O que não cabe em minha cabeça escorre em palavras sobre folhas
Tornei-me um pedaço do que sou, sem grandes memórias, desfeitos os sonhos em poeira
Sou apenas o que sou agora, pequeno no que me recordo, pequeno recorte de mim
Não sei de sorrisos ou tristezas, trago a expressão rígida pois não há nada a se mostrar.
Olho tudo com curiosidade contida, me pergunto sobre tudo, investigo quase nada.
A poeira em tuas mãos, sou o suor que evapora.
Os etéreos desejos quando te olho, os eternos desejos quando te olho, os tenros desejos quando te olho.

Os livros outrora alimentos de meu ser, agora são pedras empilhadas numa coluna alta demais, só servem desbalancear-me, desmorono na vergonha de uma taça cheia demais.
A sedução do estático. A segurança do limite. Meu corpo vibra para quebrar essas paredes dos livros. Somente palavras por baixo de suas capas, o que há para temer?
Antes o mundo nas costas, pequeno Atlas.

Minha fome do mundo se esvai nesse cansaço inumano. Se tudo meu é mortal, por que essa exaustão suprema?
As nuvens se arrastam pelo céu. Arrasto-me pelo chão
Não vejo sentido em correr. Meu peito me pede que eu corra, corria até cair quando era completo, correria até cair em completo desespero.
Uma sombra, um fantasma, sem os sonhos do passado, sem as lembranças do futuro.

A tudo queimei, sou as cinzas do meu próprio mundo.
Sou o resto da minha combustão.
Carvão da minha floresta.
O céu rasgado pelo vento. A água cortada pelas pedras.
diminutas minutas de realidade se esvaecendo na brisa
As cinzas caem pelo céu como caem as lembranças de mim.
Nevam zombeteiras e esfarelam ao toque, refletindo a efemeridade das coisas.
Revelando a intangibilidade de tudo já visto por meus olhos.
Pintam meu corpo num tom que não se lava.
Sou minha forja, ardendo nas chamas necessárias.
Esquentar esse aço que me formei
Ver amolecer as extremidades expondo as entranhas enrijecidas
Deformá-las com o martelo até não ser mais o que sou

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Queria uma palavra que significasse estar quebrado
estar quebrado além de reparo, estar quebrado além de qualquer reparo
Talvez derivasse do meu nome
que descrevesse os farelos a que se decompõem todas as partes do meu ser
escorrendo como a areia em ampulheta

o corpo refletindo as rachaduras da mente
meus joelhos falham como falha minha intrepidez
que encaixa bem com a trepidação de minhas mãos
e a estupidez de minhas ações
meus gritos silenciados por mim
minhas dores feitas por mim

o lento despedaçar
como folhas que esperam cair
e esperam sua vez e esperam o vento

fugindo das horas
melhor ficar distante de todos os relógios
a morte encapsulada em vidro e ponteiros

atos de fúria desmedida
contra um corpo que não se defende
acho que o nome crueldade vem daí

preso nessa carne que não esquenta
ferve mas não esquenta
arde mas não esquenta
queima e se marca
corta e se regenera pela metade

se eu jogar todas as palavras de destruição que conheço numa frase,
conseguiria dizer tudo que tenho no peito?
claro que não
as palavras não trariam na pele que lê o frenesi que percorre a minha
não entregariam em mãos o tremor que sinto nas minhas
não escorreriam pelo corpo como medo se faz segundo suor no meu

os olhos em ruptura da mente, não vejo o que está defronte
preso em um tempo qualquer passado ou irreal futuro
cristalizado em vidraças quebradas
pequenas janelas despedaçadas
refletem a miríade de cores do mundo
capturam num reflexo tosco como se a tudo quisessem tocar
um desenho estranho que é tomado pelo espelho
um rosto bizarro que é a imagem do desespero