domingo, 28 de fevereiro de 2021

É verão, e as águas caem num forçar das coisas e desacelerar do tempo
Voltar ou seguir qualquer caminho é sob a chuva
não há sóis, não há sequer paredes embaçadas de gotas que estão a escorrer pelas janelas
não cabem mais recortes sobre recortes, desfigurados na luz amarela que não se firma

é verão, e não há sol à vista, as nuvens se abrem em desenhos no céu que também abrem o peito
a natureza tem disso, de belo e desolador, demorar o olhar é apertar o peito
talvez esse céu desenhado em bruxuleantes espirais seja o reflexo do meu âmago, desenhando em mim na pele e embaixo dela todos os absurdos que nunca quis

tenho uma boca só, que fecha em amargor, engolindo coisas ditas tortas, morde palavras doces que perderam seu tempo, presas entre os dentes a não serem ditas jamais
meus olhos eternas espirais nauseantes a distorcer tudo que vejo em desfigurantes voltas
todos os sentimentos a dançar no absurdo, meus pés leves a saltitar nas pedras, ilusões de uma mente insana
as marcações de meu corpo refletem sob a luz noturna num brilho insensato, uma noite aberta e cheia após um dia tão fechado num brilho cinza perdido em nuvens entre céu e chuva

será que me perdi no meio da escuridão dessa estrada em que me jogo ou nas sombras que perfazem o meu caminho?
a respiração queima boca, garganta e peito, os passos seguem em algum ritmo firme, precisam seguir
em não me permitir parar, ouço sussurros e gritos em mim a questionar os passos, a dizer fácil descansar, a sugerir que andemos
mas já estou além do momento em que me escuto

em pleno verão, o asfalto macio contra a sola dos meus pés, emaranhadas as sensações em pequenas espirais que se revoltam em voltas sobre si mesmas
absorvo seus movimentos, preciso correr, a chuva desliza em minha pele combinada a suor e calor, entrelaçando minhas espirais a impedir seus movimentos
meus arredores se desmancham em meus olhos turvos, alguma coisa falha aqui dentro e esse é o sinal
mantenho a cadência de meus passos a fluir mais rápido que a decadência de minha mente
em pleno calor, sou todo eu, uma sombra dentro de sombras a correr na escuridão

domingo, 7 de fevereiro de 2021

Meu corpo implora um conhaque, um cigarro, algum prazer imediato, alguma anestesia rasa

Meu corpo chora um apagão, pede que acordemos no outro dia no chão com a mente em branco, com um novo nascer junto ao sol, mesmo que de mentira e mais frágil que vidro... era tão fácil, era tão bom...

Meu corpo pede uma dança, uma última dança, um último sangue que escorre, uma última espiral

Meu corpo suplica que as paredes se quebrem mas sabemos que só nossos punhos se fazem estilhaçar, que a pele se solta, os ossos se descolam, e mesmo com todos os estrondos, quem se quebra sou apenas eu

Meu corpo deseja mais e mais desse cansaço inumano a me desumanizar, a me jogar ao chão com tamanha força que se me levantassem só teriam meu corpo, não a mim

Meu corpo sonha queimar todo cansaço

 

Não quero a embriaguez, não quero o torpor, não quero o toque, não posso querer, quero sentir tudo, preciso sentir tudo

Sentir por completo a combater essa minha fragmentação

Sentir que todos os círculos ao seu redor foram inúteis

Que todos os erros se repetem de um jeito obsceno

Sentir quanto dói a coincidência em tudo

Fossem as coisas um pouco diferentes, mas tem que ser do mesmo modo, do mesmo jeito, de mesma vilania

Como me reter no presente se é tudo um grande assombro do passado?

Se afundo no mesmo passo, se me acomete a mesma cena ensaiada em personagens diferentes

Gritei a ironia trágica a vomitar em tudo ao redor, por que não mudam ao menos um detalhe?

Quem além de mim teria tão grande interesse em me espiralar em loucura?

É a mesma cena, sou o passageiro, é a mesma cena, sou o motorista. É a mesma cena. Todos os pequenos detalhes que poderiam ser diferentes são iguais.

Há algo em mim fazendo uma força muito grande a tentar entender qualquer coisa que não seja coincidente, mas tudo é.

Há em mim uma força maior gritando corra, corra e corra. Chore na floresta, se perca na estrada, esqueça de onde veio.

Há em mim algo que sussurra: você já se perdeu há muito, isso é apenas o reflexo.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021