O brinquedo velho e surrado, largado ao canto com suas memórias e retalhos. Vieste, usaste, foste. Tão rápido quanto um vendaval, não arrancou e arrastou o mundo em furacão, mas maculou essa terra como chuva sem fim erodindo seu caminho chão a dentro, marcando pra sempre sua passagem e deixando seus contornos. Há um despreparo no amanhecer, um desmanchar dos sonhos inesperado, um quebrar da realidade. A maciez de seu travesseiro se transforma em pedra que pesa a cabeça pelo lado de fora, sua manta vira lixa a raspar todo corpo a se sentir inadequado mesmo em si. Existem coisas que devem permanecer na escuridão da madrugada, existem olhares que precisam ser esquecidos com a passagem da aurora.
terça-feira, 9 de março de 2021
quarta-feira, 3 de março de 2021
Prendi os sentimentos numa gaiola menor que a minha.
Por conta disso não consigo sentir-lhes a falta. O vazio é tangível porém. É o espaço de uma mão espalmada e mais um pouco no meio da boca do estômago, é justo donde jorram agora energia e força como um ralo ao inverso. Tudo parece tão possível e tão absurdo, posso correr o mundo e o passo do banheiro à cozinha é um estranho abismo. As paredes não estão girando, as espirais estão paradas. As coisas estão fixas, até estáticas como devem ser, e não se movem. Não sei se encontro tédio ou conforto na falta do derreter do que é tocado pelos olhos.
Penso em deixar o copo de vidro cair ao chão para testar essa realidade, opto por enchê-lo d'água e beber, a hidratação do corpo anda largada, o copo sai da mão em alguma superfície onde está equilibrado e estável. Diferente disso, volto num andar espaçado e manco para soltar o corpo contra uma cadeira, donde fixo o olhar num ponto a não ver nada no mundo e a cada mover de um relógio imaginário, deslizar em descida abissal. Dei a volta errada ao redor dos sentimentos.
Estão novamente a sangrar pela gaiola, algo me diz que não posso contê-los. Talvez a lógica assustasse a mim, mas no momento não é possível dizer. Que coisa horrível olhar para o mundo e pensar. Crio novos sentires antes de reaver os meus. Iremos todos dançar na tormenta. Sou uma máquina de fazer sentimentos. Uma engrenagem de sensações. Mordo meu Caos e beijo minha Loucura. É necessário que seja assim, da loucura não quero arrancar pedaços e do caos não há fragmentos. Sinto que decepciono alguma coisa em mim. Noutro momento, noutra sangria, teremos a racionalidade de volta. Minha calma vem de ser eu uma tempestade maior.
segunda-feira, 1 de março de 2021
Sobre meu enterro.
Além do pensamento constantemente flutuar sobre a morte, vez ou outra me pego pensando em como seria meu velório. Não, não há uma lista de presença ou cobrança para avaliar a demonstração de carinho pelo nível de choro e perturbação demonstrada em tal evento. É mais uma curiosidade. O que pessoas que nunca se encontraram conversariam lá? Conversariam? Sairiam novas amizades de uma que se finda? Como estaria o clima e as nuvens? Mas não espero nada, estarei falecido.
Minha mente divaga devagar sem muita vontade mas sendo levada mesmo em meio a preguiça pela torrente desse pensamento. Quais frases prontas estarão inseguras de serem ditas? Quais piadas ruins? Quais sorrisos de lembranças? Quais xingamentos guardados? Quais arrependimentos estarão estampados nos rostos e almas? Mesmo a morte se apequena frente à morte.
Também me pergunto qual tipo de mal gosto triunfaria na decoração. Qual música horrenda, qual planta morta, quais canções e ritos religiosos seriam-me impostos agora que estou morto?
Que fique claro, não tenho nada contra igrejas, além de ser contra todas elas. Sinceramente vejo que a religião deveria ser um elemento transformador do indivíduo como um caminho a se alcançar virtudes que seja, mas as mais poderosas - enquanto instituições financeiras e de influência política - só cumprem a função de manipular e injetar preconceitos. Lastimável. Além de utopia esperar bondade e tolice minha dizer isso.
Como alguma obra do destino, ou brincadeira sádica de quem rola os dados, recebi uma ligação enquanto digitava essas linhas. Senhora muito simpática perguntando se teria tempo para ouvir a palavra. Teria não. Não posso muito explicar enquanto mastigo o pão e ela diz que ligaria em outro momento. Esqueci de reforçar que não precisava.