quinta-feira, 27 de maio de 2021

Quase nada convém
Brincar de iluminar a própria escuridão com frágeis e pequenas chamas
Seria crueldade beber e diluir o amargor da boca
No apego do que machuca, ir embora é mais cruel
fingimos um sorriso, dividido em partes desiguais

Esses lindos olhos que me acompanham como se eu fosse um animal exótico
Esse olhar que me prende como se eu pudesse fugir
O desafio lançado após me entrelaçar, corra, corra daqui
Fuja pequeno selvagem, fuja agora que te prendi

Qualquer convencimento no presente não passaria de ilusão
Meu corpo clama por andar, me perder, queimar e esquecer ao som monótono de passos
meus pés pedem repouso, meus ombros não soltam a tensão
desejam em conjunto que eu seja atlas a mapear o mundo e não a suportar todos os pesos

Gosto das terras deste lugar, ser das montanhas
Na vista os verdes morros se estendem a misturar em tons azulados e esfumaçados com o céu
É importante que sejam longas e vastas, assim há espaço de esticar meus sentimentos até onde os olhos alcançam
E esticados posso observar o que são
Entender num nível sublime que não posso dizer que compreendo mas que flui por mim

Queria outra palavra pra céu, aqui só essa não basta
Sinônimos que pudesse desenhar com nuvens cinzas apressadas a ganhar distância sabe-se indo lá pra onde
Ou capturar as tonalidades de cinza que quase estáticas fazem uma pintura de presságio
Ou descrever essa parede acinzentada dos dias gélidos impossíveis de serem vencidos
Dá pra sentir muito e não entender nada

Tudo que é belo dói, como se a intensidade da beleza me fosse custosa aos olhos. Arde. Como se pagasse em dor o que meu olhar toca, em cada vislumbre o preço é a vista.
Não me envergonha as lágrimas, nem o sangramento discreto, interno e simétrico por trás dos meus olhos.
Absorvendo os últimos feixes de luz antes do anoitecer.

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Nas grandes mutações dos pequenos sentimentos

Ou bem no contrário disso.

Sou outra coisa.

Da mesma carne e mesmo sangue mas outra coisa.

Não sou a peça restante remontado o despedaço, não sou encaixe de bordas sobressalentes a não se encaixar.

Não sou o ladrilho um pouco pra baixo e pra esquerda, lascado do outro lado, meio torto mas imperceptível na vista abrangente de todos os detalhes. 

Não sou a circunferência desenhada suave a lápis na parede, elusiva que some ao reflexo errado da luz certa.

Não sou o círculo sonhado e calcinado logo abaixo do olho direito.

Uma outra coisa.

Sou a sobra dos destroços vomitados pelo redemoinho finda a tempestade, sou o solo chamuscado em tons negros e cinzas de raio depois do relâmpago.

Sou o vazio que se sobrepõe ao trovão.

Não sou resto mas surjo dele, não sou sombras a lhe assombrar na noite, não sou feixes de luz a lhe acariciar o rosto no amanhecer, não sou sobras, não sou bordas.

Sou o tronco deitado, aberto, de musgo, morte e vida.

Céu de nuvens espalhadas, na beleza que corrói e arde, nas cores de sangue dispersadas no horizonte, o som inócuo de uma morte cândida.

Sensação de prender a respiração, feita proibida no instante a não romper a tensão quase palpável no ar, a não violar a estagnação desejada pelas coisas que perfazem o ambiente.

Sou o labirinto de meu monstro, sou a porta de entrada de meu labirinto.

Ainda sou outra coisa.

Deslocado como um ombro ruim

Sou essa cicatriz na palma da mão

Um café frio na força necessária

Uma janela aberta na noite gélida

Uma árvore ansiando por água

Ruínas zombeteiras recheadas de escárnio pelas coisas inteiras

Sou esses passos perfeitamente em desalinho, esse andar bêbado na obscenidade de se estar sóbrio, a palma ao rosto e um gargalhar desvairado, um sorriso ensandecido a acompanhar trêmulos bruxuleantes olhos loucos

Sou o grito mordido contra a pele, espremido sob dentes inofensivos

Sou insensatez

A malha de detalhes intransponíveis, é preciso olhar a todos, as lascas que se soltam das casas como não quisessem mais fazer-lhes parte, as pátinas detalhadas nas pessoas como a enunciar as dores, assombros e declínios sem a necessidade de palavras.

A trança absurda de minúcias, insignificantes e inevitáveis, entrelaçadas no limite de sua resistência ameaçando rasgar-se por inteira.

A intrincada dança dos vestígios de estragos e reparos, incidentes e intenções, pele tinta queimaduras cortes, macio e firme, doloroso e amargo, rastros de uma destruição em andamento.

Sou a minha espiral.