Ou bem no contrário disso.
Sou outra coisa.
Da mesma carne e mesmo sangue mas outra coisa.
Não sou a peça restante remontado o despedaço, não sou encaixe de bordas sobressalentes a não se encaixar.
Não sou o ladrilho um pouco pra baixo e pra esquerda, lascado do outro lado, meio torto mas imperceptível na vista abrangente de todos os detalhes.
Não sou a circunferência desenhada suave a lápis na parede, elusiva que some ao reflexo errado da luz certa.
Não sou o círculo sonhado e calcinado logo abaixo do olho direito.
Uma outra coisa.
Sou a sobra dos destroços vomitados pelo redemoinho finda a tempestade, sou o solo chamuscado em tons negros e cinzas de raio depois do relâmpago.
Sou o vazio que se sobrepõe ao trovão.
Não sou resto mas surjo dele, não sou sombras a lhe assombrar na noite, não sou feixes de luz a lhe acariciar o rosto no amanhecer, não sou sobras, não sou bordas.
Sou o tronco deitado, aberto, de musgo, morte e vida.
Céu de nuvens espalhadas, na beleza que corrói e arde, nas cores de sangue dispersadas no horizonte, o som inócuo de uma morte cândida.
Sensação de prender a respiração, feita proibida no instante a não romper a tensão quase palpável no ar, a não violar a estagnação desejada pelas coisas que perfazem o ambiente.
Sou o labirinto de meu monstro, sou a porta de entrada de meu labirinto.
Ainda sou outra coisa.
Deslocado como um ombro ruim
Sou essa cicatriz na palma da mão
Um café frio na força necessária
Uma janela aberta na noite gélida
Uma árvore ansiando por água
Ruínas zombeteiras recheadas de escárnio pelas coisas inteiras
Sou esses passos perfeitamente em desalinho, esse andar bêbado na obscenidade de se estar sóbrio, a palma ao rosto e um gargalhar desvairado, um sorriso ensandecido a acompanhar trêmulos bruxuleantes olhos loucos
Sou o grito mordido contra a pele, espremido sob dentes inofensivos
Sou insensatez
A malha de detalhes intransponíveis, é preciso olhar a todos, as lascas que se soltam das casas como não quisessem mais fazer-lhes parte, as pátinas detalhadas nas pessoas como a enunciar as dores, assombros e declínios sem a necessidade de palavras.
A trança absurda de minúcias, insignificantes e inevitáveis, entrelaçadas no limite de sua resistência ameaçando rasgar-se por inteira.
A intrincada dança dos vestígios de estragos e reparos, incidentes e intenções, pele tinta queimaduras cortes, macio e firme, doloroso e amargo, rastros de uma destruição em andamento.
Sou a minha espiral.