segunda-feira, 17 de outubro de 2022

ouço no fone uma voz feminina, Matilde, uma voz de sotaque tão distante da minha fluída compreensão e tão próxima de me dilacerar, de me abrir com dedos sem pausa e sem licença, abrindo como quem anda pelas ruas, como quem caminha firme em solo novo como velho conhecido, como a certeza com que as coisas vão ao chão se entregando à gravidade

meu coração, cuidado, é frágil, Campilho pise devagar

poderia desenhar-me em qualquer cenário, não importa, não seria diferente

estou em um quarto que se isola um pouco de tudo, ainda bem ao centro e próximo, afastado mesmo por nada
isso é a mágica das portas, dos ruídos, do isolamento

assim como de si não há fuga, não há caminho sem doer quando ressoa os versos em mim, arderia em qualquer lugar, doeria em qualquer quando

onde o tempo passa um pouco diferente, ouvindo, entoando

é como lâmina de machado a romper as amarras de todos os sentimentos represados
tudo está livre e me inunda, não fugi de nada, não me preparei nada, dói como tudo, como uma coisa tão antiga e nostálgica e quase anciã, como se a única convicção fosse dor

sua voz parece um tapa necessário de que não se desvia
dói antes de sequer entender o conteúdo
como uma pancada de rosto em água sem compreender ainda se afogará ou não

segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Papéis espalhados pela casa - escritos, desenhados, datilografados. Cadernos em branco, nunca entendi essa resistência em usar as folhas dentro de um caderno, mas seguem vazios. Os livros mais empoeirados que lidos, alguns embalados, tombados e esquecidos como tantas coisas esmaeceram por trás destes olhos. Houvesse energia, haveria lamento.

Os dias empilhados a alcançar o teto, dias que mordem uns aos outros, e são devorados na tosca rotação semanal, dias que comem dias e cospem semanas e expelem anos. Criamos coisas boçais por sermos boçais. Inventamos ordem e coisas pequenas e controláveis e coisas grandes e controláveis e nos descontrolamos e racionalizamos em fuga rabiscamos números palpáveis exatidões falsas preciosismo com tudo que serve pra nada

Somos engrenagens ou aguardos de erupção

disse, digo, tornei-me uma grande poça, incapaz de qualquer forma, tornar algum pensamento em alguma coisa maior, estando em nenhum lugar me dispersando em todos, diluído ao ponto de não mais ser, irradiando sentimentos confusos de forma contínua como se a todo instante fosse uma pedra a romper da água a superfície, mas não afundo, estou à deriva, não consigo adentrar minha profundidade, alcanço tateando e pego por vezes pequenas partes desprendidas flutuantes, sobras de ideias já sem finalidades e sem contexto - apresentadas assim a não conseguir dizer nada, é o que sobrou, dissolvido em minha própria liquidez