O vidro estala e escorre pela pia, linhas finas de sangue e sabão gotejam sobre o metal, uma sensação de que isso deveria ocorrer de alguma forma, das duas taças, vou dizer que essa não era a minha, pra que a outra finalmente seja. Inspiro pesado como sempre inspirei em minha vida, eu acho incrível como essas coisas tem um jeito de se fazerem absurdamente cada vez mais densas, como uma névoa impossível de perscrutar por quão lisa em toda sua extensão e, ainda assim, tão óbvio quando se torna mais espessa, tão inequivocamente claro que alguma coisa mudou, algo indefinido, algo sem nome, como ocorre aqui dentro.
O mundo de alguma forma chama, vozes distantes, algum cachorro na rua, só barulhos sem cheiros ou imagens que não me alcançam, algum facho de luz solar contrário aos que foram tímidos demais e se perderam no caminho, contrário aos refletidos em qualquer outra coisa, esse se esgueirou de uma forma ou outra até atingir um de meus olhos, tenho certeza estaria belo entre âmbar e terra, um castanho firme independente da luminosidade. Isso também não me foi capaz alçar.
Dessa vez, e cada é única, e também perpassa os mesmos lugares, desço escadas em espiral, feitas em pedra, esculpidas na própria rocha - não transportadas de outro lugar, sem muitos adornos, estáveis como nada que já senti. Não é um redemoinho, não é uma tempestade, não estou caindo ou afundando, são passos sólidos - em cada um deles está todo meu ser, calculados houvesse alguma lógica, ressentidos houvesse alguma dúvida, cada passo é meu e meu somente.
Ainda tenho medo de me perder nessas ruínas, em corredores que perderam seu objetivo, em salas escuras demais e polidas demais a tornar quase impossível sair por tato ou visão. Minhas mãos marcadas pelas pedras, meus pés pelos cacos, conheço cada vão e cada fio melhor que a mim. Arcabouço transformado em reclusão. Como é lamuriante essa fundação, tristes as coisas perdidas suas razões de ser, melancólico todo ar que aqui perpassa, como me sinto em casa...
Nunca vou dizer que queria não ser assim para não ter a sorte de não ser. Mas vejo e percebo, todas essas pequenas ironias trágicas, os nomes não ditos, as palavras presas em outra coisa que não língua, lábios ou dentes. A oscilação nos olhos, a distância das palavras proferidas a um palmo de meu rosto. Não estou aqui para dar nomes, não sou nomeador; não aqui, não agora. Nem para lembrar com perfeição os tons harmônicos e mesclados de íris, cabelos e pele; apesar de lembrar perfeitamente. Sinto e escrevo. Do ventre à terra.